Estudos com a espécie Spodoptera frugiperda, a lagarta-do-cartucho, detectaram uma das proteínas Bt encontradas
em cultivares transgênicas de milho – a Cry1F – nos ovos dos seus
descendentes. Assim, antes mesmo que as lagartas eclodam, os embriões já
podem ter sido expostos à proteína se a geração anterior se alimentou
do milho Bt. Essa proteína é tóxica ao inseto, no entanto, com
sua presença desde a fase de ovos, pode aumentar as chances de
selecionar indivíduos resistentes.
“Descobrimos que a exposição da principal praga do milho a uma das proteínas Bt
já começa no embrião, o que pode contribuir para a pressão de seleção
da resistência”, explica a pesquisadora Simone Martins Mendes, da área
de Entomologia da Embrapa Milho e Sorgo (MG). A descoberta, inédita e publicada em setembro na revista científica americana Plos One, pode indicar novos caminhos para entender a rápida seleção da resistência dessa praga às tecnologias transgênicas.
“Em outro trabalho, [publicado em 2016 na revista científica europeia Entomologia Experimentais et Applicata]
mostramos que, em quatro gerações de seleção em laboratório, é possível
selecionar lagartas resistentes a essa mesma proteína”, reitera a
pesquisadora. “Na verdade, temos acompanhado a velocidade da seleção da
resistência dessa espécie de praga às proteínas do Bt expressas
no milho transgênico nas condições tropicais de cultivo. Já entendemos
que muitos são os fatores que podem contribuir para esse quadro”,
adianta Simone Mendes.
O artigo publicado na Plos One não é o primeiro trabalho científico que mostra o processo de transmissão da proteína Bt para os ovos de insetos. A pesquisadora Debora Pires Paula, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF), detectou anteriormente a proteína Cry1Ac nos ovos de outro lepidóptero, o inseto Chlosyne lacinia,
popularmente conhecido como lagarta-do-girassol, após o consumo da
proteína pelos parentais, e também em ovos da joaninha predadora Harmonia axyridis. “Contudo, a Spodoptera frugiperda é a principal espécie-alvo da tecnologia Bt no milho que apresentou quebra de resistência à tecnologia para populações coletadas em 2012”, relata a cientista.
O mecanismo de resistência
De acordo com a engenheira agrônoma Camila Souza, autora do estudo que foi tema de dissertação de mestrado no programa de pós-graduação em Entomologia na Universidade Federal de Lavras (Ufla), a resistência a pragas é um dos principais efeitos indesejáveis da expressão de genes cry em culturas Bt e é considerada uma das principais ameaças ao uso sustentável das tecnologias transgênicas.
“As implicações que os processos de transferência da proteína Bt
podem ter na evolução da resistência a insetos e até mesmo em
organismos não alvo, como nos inimigos naturais, permanecem
desconhecidas. Todavia, precisam ser investigadas, pois esses resultados
mostram que os organismos não alvo podem ter acesso à proteína tóxica
não somente por via direta, por meio de uma presa exposta à proteína,
mas também indiretamente, pelos descendentes que ainda não tiveram
contato por meio da ingestão da proteína”, demonstra.
A
resistência pode ser caracterizada quando uma população de um inseto
deixa de ser controlada pela toxina presente na planta transgênica e
consegue sobreviver durante todo o ciclo, alimentando-se dessa planta e
se reproduzindo. “Naturalmente existem indivíduos nas populações da
praga que sobrevivem às proteínas do Bt. Porém, em condições
normais, ou seja, sem a exposição constante às plantas transgênicas, a
frequência com que esses indivíduos ocorrem é baixa. O processo de
seleção da resistência nada mais é que o aumento da frequência de
ocorrência desses insetos na população”, explica a pesquisadora Simone
Mendes. “No caso do presente estudo, observamos que existe o sequestro
da proteína Cry1F da planta Bt para a prole descendente, sendo que essa proteína é transferida dos pais para os ovos”, conclui.
Segundo
a autora do estudo, a agrônoma Camila Souza, a alimentação de lagartas
com folhas de milho contendo a proteína Cry1F, mesmo que apenas por
cinco dias, de acordo com a metodologia utilizada, propiciou o sequestro
e a transferência da proteína Bt das plantas para a geração seguinte. “A detecção da proteína Cry1F nos ovos de Spodoptera frugiperda,
depois da exposição dos pais à proteína tóxica, confirma que as larvas
são capazes de sequestrar a proteína presente nas folhas de milho e
transferi-la para a sua prole. Em condições de campo, essa exposição
pode ocorrer durante todo o ciclo de desenvolvimento do inseto. Por
isso, são necessários estudos para entender todas essas interações no
processo de seleção da resistência”, complementa a engenheira-agrônoma.
O trabalho comprovou também que ambos os sexos do inseto têm a capacidade de transmitir a proteína Bt
aos descendentes. “Quando ambos os pais foram expostos à proteína, a
concentração de Cry1F sequestrada nos ovos foi significativamente maior
(quase o dobro) em relação a quando apenas o macho ou a fêmea foram
expostos à proteína”, enfatiza Souza.
Importância da área de refúgio é comprovada cientificamente
Indivíduos em destaque na cor vermelha: lagartas resistentes à proteína Bt. Na cor azul, suscetíveis
Foram
avaliadas populações de lagartas resistentes à proteína Cry1F com ambos
os sexos expostos à mesma proteína; lagartas resistentes com apenas o
macho exposto à Cry1F; lagartas resistentes com apenas a fêmea exposta; e
lagartas suscetíveis não expostas à proteína que serviram como
tratamento-controle. Todas as populações avaliadas – resistentes e
suscetíveis – foram expostas à proteína no final da fase de
desenvolvimento larval. A quantificação da proteína Cry1F nos ovos foi
realizada no Laboratório de Bioquímica e Biologia Molecular da Embrapa
Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília (DF).
Os
resultados mostram que houve diferença significativa em relação à
sobrevivência larval quando lagartas resistentes e suscetíveis foram
expostas à proteína Cry1F. “Obviamente, a população suscetível
apresentou 100% de mortalidade. Contudo, entre as lagartas resistentes, a
sobrevivência variou entre 85% e 90%, em média, sendo que os insetos
completaram o ciclo de desenvolvimento. Esses resultados mostram que a
característica de resistência entre a população resistente foi mantida e
que a população suscetível continuou sendo controlada pela proteína
Cry1F. Foi verificado também que essa proteína não teve efeito
prejudicial na reprodução e longevidade”, explica Camila Souza.
“Nossos
resultados contribuem para o entendimento da evolução da resistência e
reforçam a importância do uso adequado de áreas de refúgio (veja acima figuras que ilustram a pressão de seleção),
uma vez que, quando ambos os sexos resistentes são expostos à proteína,
o sequestro e a transferência para os ovos são potencializados”, cita a
autora. Refúgio é uma área, dentro da lavoura, onde se planta o milho
sem a tecnologia Bt. Seu papel é reduzir a exposição dos
insetos-praga ao mecanismo de ação dos transgênicos. Os insetos que
nascem na área de refúgio continuam suscetíveis à toxina transgênica e
podem se acasalar com os resistentes e, assim, diluir a população de
indivíduos que desenvolveram resistência.
“Se imaginarmos a
existência das áreas de refúgio em proporção adequada, haveria maior
possibilidade de somente um dos pais ser exposto à proteína, reduzindo a
exposição embrionária. Além disso, o acasalamento com os indivíduos
suscetíveis vindos da área de refúgio teria papel fundamental na redução
da exposição dos embriões à proteína de forma prematura. As implicações
que esses processos podem ter na evolução da resistência a insetos e no
manejo de culturas Bt permanecem desconhecidas, e as consequências da transferência de proteínas Bt precisam ser estudadas”, destaca a pesquisadora.
Como funciona o Bt
Um dos principais problemas surgidos após a ampla adoção do milho Bt
foi a seleção de insetos-alvo resistentes às proteínas tóxicas que até
então controlavam as principais pragas da cultura, como a
lagarta-do-cartucho. O milho Bt expressa uma ou mais proteínas da bactéria Bacillus thuringiensis, que possuem atividade inseticida contra os insetos-alvo.
No
Brasil, o primeiro evento de milho transgênico foi liberado para uso
comercial pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)
em 2008. “Nesses dez anos de utilização da tecnologia transgênica em
milho, houve grandes transformações do manejo de praga da cultura”,
avalia a pesquisadora Simone Martins Mendes.
Segundo dados de agosto de 2018, da Consultoria Céleres, publicados no documento “20 anos da adoção da biotecnologia agrícola no Brasil: lições aprendidas e novos desafios”,
a área plantada com cultivares de milho geneticamente modificado
atingiu 107,3 milhões de hectares na última safra, considerando o
acumulado entre as safras de verão e de inverno. “A velocidade de adoção
do milho transgênico ultrapassou o patamar de 90% da área total da
safra de inverno, em apenas dez temporadas de liberação comercial”,
informa a consultoria.
“O risco potencial para a evolução da
resistência é alto para a lagarta-do-cartucho porque o sistema de
produção no Brasil tem sobreposição temporal e espacial do milho Bt. No campo, essas culturas estão expostas à população de Spodoptera frugiperda,
sendo que a pressão de seleção é intensa em cada geração da praga,
aumentando o risco de seleção de indivíduos resistentes”, diz a agrônoma
Camila Fernandes.
|
Preservação da tecnologia
Segundo a engenheira-agrônoma, para prolongar a eficácia de culturas Bt
é essencial desenvolver uma gestão estratégica para atrasar a evolução
da resistência de pragas aos transgênicos. Uma das principais
estratégias apontada pela pesquisa é a utilização da chamada alta dose
(elevada expressão, nas cultivares, da proteína Bt) juntamente
com a adoção da área de refúgio, impedindo a evolução da resistência.
Outro método para o manejo da resistência é a introdução de eventos
transgênicos piramidados, ou seja, a combinação de diferentes genes em
um só híbrido provendo controle independente contra a mesma praga. As
proteínas Vip3a20, por exemplo, possuem características importantes como
a resistência a insetos em que a proteína Cry já não faz mais efeito.
A execução do trabalho foi viabilizada por meio da parceria de diversas instituições, como a Embrapa Milho e Sorgo, a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, a Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, e a Universidade Federal de Lavras.
Guilherme Viana (MTb 06566/MG)
Embrapa Milho e Sorgo
Comentários
Postar um comentário